'O boi teve o rabo arrancado': proibição da vaquejada abre polêmica
Noite de maio de 2015 no parque Alto Sereno, em Serrinha (BA). Cerca de 2.000 pessoas assistem
a dois homens montados em cavalos perseguirem um boi com o objetivo de
derrubá-lo numa faixa de areia, puxando o animal pelo rabo.
O
boi, que passou o dia tendo que fazer a mesma coisa, é jogado ao chão com as
quatro patas para cima, e sofre um "desenluvamento" --nome técnico
dado ao arrancamento do rabo, a retirada violenta de pele e tecidos da cauda.
O
episódio ocorreu durante uma vaquejada, tradição secular no Nordeste que tem
origem em disputas de vaqueiros no sertão. Em eventos que costumam durar quatro
dias, cavaleiros derrubam bois em busca de prêmios em dinheiro.
No parque Alto Sereno, por exemplo,
as premiações chegam a R$ 50 mil. Além de competições, há leilões de cavalos,
shows musicais, escolha do rei e da rainha da vaquejada, entre outras
atividades.
Segundo
a Associação Brasileira de Vaquejadas (Abvaq), a atividade no Nordeste
movimenta R$ 700 milhões por ano e gera 750 mil empregos (diretos e indiretos).
A
existência desses eventos, no entanto, está ameaçada no Brasil em razão de uma
decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia 6 de outubro, a
Corte julgou a vaquejada como uma crueldade contra os animais, ao analisar a
constitucionalidade de uma lei de 2013 do Ceará que reconhece a atividade como
desportiva e cultural.
Como
reflexo do julgamento do STF, decisões judiciais recentes proibiram, a pedido
do Ministério Público, as vaquejadas de Paulo Afonso e de Praia do Forte, ambas
na Bahia.
A decisão do STF também
colocou na berlinda outras manifestações culturais que utilizam animais, como a
Festa do Peão de Barretos (SP) e o "rodeio crioulo", evento
tradicional no Sul do país.
Mas ainda há
interpretações distintas do caso: mesmo após o julgamento do STF, um juiz
liberou a vaquejada em Campina Grande (PB), por exemplo.
Proibições
Fãs da vaquejada temem que a atividade tenha o mesmo fim das
brigas de galo no Rio de Janeiro,
em 2011, e da "farra do boi" de Santa Catarina, em 1999,
que também tiveram tentativas de regulamentação, mas foram julgadas
inconstitucionais pelo STF.
Fora
do Brasil, outro exemplo semelhante de interferência judicial na participação
de animais em eventos é o da Catalunha, na Espanha, onde as touradas foram
proibidas em 2011.
Naquele
mesmo ano, a Justiça da Bahia vetou a participação de jegues em dois eventos
tradicionais de Salvador: a Lavagem do Bonfim e o desfile do bloco carnavalesco
Mudança do Garcia.
Nesses
dois eventos na Bahia, constataram-se maus-tratos, como o carregamento de
carroças com diversas pessoas em cima, e até a ingestão de bebidas alcoólicas
pelos animais.
"Fizemos
vídeos, mostramos como os animais são tratados e a Justiça foi sensata em
proibir. E essa decisão do STF sobre a vaquejada foi uma vitória para todos
aqueles que cultuam a preservação da vida", disse a advogada e vereadora
de Salvador Ana Rita Tavares (PMB), de atuação focada na defesa dos animais.
Para
ela, a vaquejada é um "instrumento de violência" porque, em sua
opinião, "agir com violência é considerado uma coisa normal" nesses
eventos.
Lobby pró-vaquejada
Mas os adeptos da
vaquejada tiveram uma importante vitória na terça-feira (1º), quando o Senado
aprovou o projeto de lei que a eleva à condição de manifestação cultural
nacional e patrimônio cultural imaterial.
O
projeto de lei tinha sido aprovado na semana passada por uma comissão do Senado
e analisado pela Casa como caso de urgência.
A
decisão veio depois que centenas de adeptos da vaquejada foram a Brasília no
último dia 25 para um protesto --com direito a bois e cavalos na Esplanada dos
Ministérios. Também montaram uma espécie de quartel-general na capital
federal, com advogados, políticos, empresários e organizadores de vaquejadas.
"Estamos
tendo reuniões todos os dias e estudando medidas que podemos tomar para que a
tradição da vaquejada continue", disse o deputado federal Arthur Maia
(PPS-BA), que classifica a decisão do STF como "ato de discriminação
contra o Nordeste".
"É
discriminação porque o STF permite esportes de ricos que usam animais, como
polo, turfe, rodeio. Como a vaquejada é uma atividade de vaqueiros pobres, eles
não permitem", afirmou o deputado.
"O
que se precisa é corrigir o que ainda é feito de forma errada, o que já vem
sendo feito há tempos. Há plantão de veterinários, não existe mais contato dos
animais com o metal e é utilizado um rabo artificial", afirmou na ocasião
o senador José Agripino (DEM-RN).
O
parecer do STF, entretanto, prevalece sobre a decisão do Senado na terça. Ainda
é incerto se o projeto de lei, depois de ser sancionado pelo presidente, Michel
Temer, poderá reverter as proibições de realização da festa no país.
No Nordeste, além do
Ceará --cuja lei reconhecendo a atividade como desportiva e cultural foi
considerada inconstitucional. Bahia, Alagoas, Paraíba, Piauí reconhecem a vaquejada como
atividade desportiva e cultural.
De
acordo com o STF, o julgamento sobre a lei cearense não possui vinculação
direta com casos de outros Estados. Mas caso o tribunal seja provocado
novamente sobre a regulamentação da vaquejada em alguns desses Estados, o
resultado tende a ser o mesmo do julgamento anterior, pois é improvável que
algum ministro mude o voto.
Ainda
segundo a assessoria do STF, o julgamento sobre a vaquejada não interfere em
outros eventos com participação de animais, como a Festa do Peão de Barretos.
Para
o jurista Ives Gandra Martins, se outros casos de eventos que supostamente
promovam maus-tratos a animais chegarem ao STF, a Corte "poderá reavaliar
a decisão anterior ou confirmá-la, dando-lhe efeito vinculante".
Discussão jurídica
No Nordeste, a decisão
do STF está sendo usada tanto por defensores como por críticos das vaquejadas.
Para
decidir contra a lei do Ceará, o STF se baseou em laudos sobre as vaquejadas
produzidos por centros de pesquisa. Um deles, da Universidade Federal de
Campina Grande (PB), apontou "lesões e danos irreparáveis" em bois e
cavalos, como exostose (formação anormal de ossos ou cartilagens), miopatias
(doenças musculares) por esforço e fraturas.
E
foi justamente em Campina Grande que um juiz negou pedido de liminar de uma ONG
que reivindicava o cancelamento da vaquejada local, usando a mesma decisão
recente do STF.
Ele
citou o voto do ministro do STF Luís Roberto Barroso, que sugere a proibição
dos eventos "quando for impossível sua regulamentação de modo suficiente
para evitar práticas cruéis".
"Em
Campina Grande, o juiz nos deu a oportunidade de demonstrar o que estamos
fazendo para proteger os animais. Ao conhecer nossos argumentos, entendeu que
realizávamos uma vaquejada dentro dos princípios de respeito aos animais
adotados nos dias atuais", disse o advogado da Abvaq Leonardo Dias.
No Rio Grande do Sul, a
tradicional prática do rodeio crioulo é realizada em acordo com o Ministério
Público desde 2013.
No
evento, o "ginete", com papel semelhante ao do vaqueiro no Nordeste,
é desafiado a domar um cavalo ainda não amansado para montaria, o que faz com
que o animal tente de tudo para derrubar a pessoa.
"Mudamos
várias regras. Proibiu-se, por exemplo, o uso de esporas de estrela (com
pontas), que machucam os cavalos. Antes, eles sangravam muito, ficavam com
feridas enormes", disse o promotor Luis Augusto Costa, de Vacaria (RS).
Segundo
ele, depois do acordo e das novas regras, cerca de outros 50 eventos do tipo
assinaram termos de ajustamento e não têm sido alvo de ações judiciais.
Sem acordos
No que depender da
promotora de Serrinha (BA), contudo, cidade que abriga a maior vaquejada do
Brasil, o evento local está com os dias contados.
"A
decisão [do STF] é conclusiva no sentido de que a prática de vaquejada
configura crime ambiental de maus-tratos a animais, alcançando todos os
Estados", diz Letícia Baird.
Ela
diz, por exemplo, que já constatou o "desenluvamento de cauda" de boi
durante fiscalização no parque Alto Sereno.
Até
então, o Ministério Público vinha fechando acordos com os dois parques de
vaquejadas da cidade para minimizar o sofrimento dos animais - agora, avalia
que tais acertos não são mais possíveis.
O
dono do parque Alto Sereno, o deputado estadual Givaldo Lopes (PT), que esteve
no ato em Brasília, diz que o evento não causa sofrimento aos animais.
"O
que ocorreu em 2015 [arrancamento do rabo do boi] não teve neste ano, estamos
com novas regras e todos estão de acordo em segui-las. Não queremos ficar na
ilegalidade, queremos continuar com a vaquejada", disse.
Promotoria
e ONGs de defesa animal informaram que as vaquejadas de Serrinha ocorreram sem
problemas neste ano.
Na
cidade de 82 mil habitantes, as competições ocorrem há 46 anos e são o motor da
economia local.
O
prefeito da cidade, Osni de Araújo (PT), diz que "mais de mil casas são
alugadas" e "hotéis daqui e de cidades próximas ficam cheios"
durante o evento. "Se acabar, será um grande prejuízo para o povo do
Nordeste."
Fonte: UOL