Trem do Pantanal e seus trilhos da terra em transição: ditadura militar e identidades do MS
Fernando de Castro Além
31
de março de 2024 marca os 60 anos do golpe militar ocorrido no Brasil, que
trouxe consequências profundas para a sociedade brasileira, tão vivas nesses
dias de avanço de reacionarismos, que evocam aos fantasmas daquele
tempo. Um destes esqueletos tirados do armário é
a criminalização da música considerada engajada, crítica. Se naquele momento
havia a censura, que buscava tirar de circulação as músicas consideradas
inapropriadas ao modelo de sociedade que se queria impor, hoje ocorre o
cancelamento por parte dos tribunais das redes sociais, aos artistas que
questionam e criticam este reacionarismo, que evoca a este passado tão recente
na História brasileira.
Chico Buarque sofreu perseguições nos dois períodos, o atual e
durante a ditadura militar. São muitos os artigos, teses, dissertações e
monografias que refletem sobre a censura imposta às muitas composições de
autoria deste artista brasileiro durante os anos de chumbo. Sem entrar
no mérito das discussões acadêmicas, o artista teve que utilizar pseudônimos,
como Julinho de Adelaide e Leonel Paiva, com o intuito de driblar a censura
imposta à sua obra. Mesmo assim, a censura foi implacável com a produção
musical deste artista.
Chamando atenção para outras músicas produzidas neste período e
que evocam ao tema da ditadura militar, uma delas é a icônica Trem
do Pantanal. Porém, interessante apontar que sua apropriação
se deu de maneira muito diferente, se comparada ao seu locus original
de criação. De canção de refúgio motivada pela opressão imposta pela ditadura
militar, transformou-se em um símbolo da identidade do Mato Grosso do Sul.
Talvez seja a canção, entre tantas produzidas no estado, que melhor evoca um
ser sul-mato-grossense. Quando ela toca, imediatamente o ouvinte expande seu
imaginário àquilo que nos representa como um canto do Brasil e do planeta que
engloba, ao mesmo tempo, o Pantanal, a fronteira do Paraguai e da Bolívia, o
Bolsão e às regiões limítrofes com outros estados do Brasil. Ou seja,
transformou-se na música do Mato Grosso do Sul.
Portanto, Trem do Pantanal não é
uma música cuja letra foi composta no sentido de enaltecer a identidade do
antigo sul do Mato Grosso, ou mais especificamente do Pantanal. A canção, de
ritmo ternário de origem platina, composta em 1975, com a ditadura militar em
pleno vigência, por dois músicos cariocas de família sul-mato-grossense,
Geraldo Roca e Paulo Simões, foi escrita originariamente no sentido de relatar,
de forma poética, a fuga de um amigo militante do Partido Comunista Brasileiro,
da repressão imposta pela ditadura militar, para a cidade de Santa Cruz de La
Sierra, na Bolívia, utilizando como meio de transporte o trem do pantanal,
conforme apontado por Paulo Simões em entrevista concedida ao jornalista campo-grandense
Rodrigo Teixeira.
A trajetória de transformação identitária de Trem
do Pantanal em a música do Mato Grosso do Sul foi
muito bem apontada pelo Professor e Pesquisador Gilmar Lima Caetano. Em sua
tese de doutoramento em História pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), Caetano reflete sobre o processo de invenção das identidades
sul-mato-grossenses. Processo este idealizado e colocado em prática ainda no
período da ditadura no Mato Grosso uno, por uma elite intelectual alocada nas
Universidades, e depois nas Instituições recém-criadas pelo novo estado do Mato
Grosso do Sul.
Esta identidade acabou sendo consolidada pelos próceres do
jornalismo sul-mato-grossense assentados nos principais órgãos de imprensa do
estado, como a TV Morena e o Jornal Correio do Estado. Vale lembrar do FESUL e
do FESTÃO, festivais de música organizados pela TV Morena que, segundo Caetano
“indicariam grande interesse político em reforçar a identidade regional”.
Caetano afirma também que este processo de criação de uma
identidade cultural do Mato Grosso do Sul acabou gerando um campo de artistas
da música reconhecidos como a elite da música sul-mato-grossense, artistas em
que suas composições retrataram melhor os elementos identitários, o ser
sul-mato-grossense, ao reafirmar em suas canções as coisas do Pantanal,
das regiões de Fronteira, os indígenas, entre outros. Esse campo foi
consolidado pelas lentes, microfones e canetas de quem tinha o poder de
determinar quais eram estes artistas: jornalistas e intelectuais do
recém-criado estado do Mato Grosso do Sul, alocados nas Instituições de Cultura
e Ensino, e nas redações dos principais órgãos de imprensa do estado, como o
jornal Correio
do Estado e a TV Morena.
Entre estes artistas, todos estabelecidos ou moraram em Campo
Grande, estão Almir Sater, que popularizou o Trem do Pantanal em sua
gravação de 1982, os compositores da canção Paulo Simões e Geraldo Roca, os
irmãos Espíndola (Geraldo, Tetê, Alzira, Celito, e posteriormente Jerry),
Guilherme Rondon, Carlos Colman e Grupo Acaba.
Voltando à transição que levou a música Trem
do Pantanal de canção refúgio da ditadura militar brasileira à
música que representa o estado do Mato Grosso do Sul, podemos afirmar que este
processo se insere naquilo que os historiadores chamam de invenção
das tradições. Esta necessidade em criar uma identidade
sul-mato-grossense instituiu novos padrões de reconhecimento de identidades –
como o Pantanal, os elementos fronteiriços do Paraguai e da Bolívia, a criação
de gado, o tereré, os indígenas do MS, etc -, por quem tinha o poder, no
interior das instituições e instrumentos de comunicação de massa, em assim o
fazer. São novos padrões de reconhecimento que se instalam, pois os antigos não
dão mais conta de se afirmar na nova conjuntura, aqui relacionada à criação do
estado do Mato Grosso do Sul. Aqui, podemos citar o historiador Eric Hobsbawn.
De acordo com o autor, tradição inventada seria:
[…] um conjunto de práticas, normalmente regulada por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer um continuidade com
um passado histórico apropriado (HOBSBAWN, 1997, p. 9).
É nesse contexto que se insere a canção ternária Trem
do Pantanal. Realocada de seu locus originário, do
desterro do lugar de origem de um militante comunista, ocasionado pela
perseguição imposta pela ditadura militar brasileira, em que o icônico trem do
pantanal é o instrumento principal de fuga, naquele momento histórico nacional
que merece ser sempre lembrado para que nunca ocorra novamente, em que o “medo
viaja também sobre todos os trilhos da terra” (SIMÕES, ROCA, 1975). Portanto, a
necessidade em criar uma identidade sul-mato-grossense levou à sua
re-significação, por aqueles que tinham o poder de assim o fazer, e
este movimento fez o Trem do Pantanal se
consolidar no imaginário popular como a canção que melhor evoca o ser
sul-mato-grossense.
Uma mesma canção e dois contextos históricos que se imbricam,
mas que levam seu significado para outros trilhos da terra. Vale
lembrar que, nunca foi tão necessário refletir sobre seu contexto originário de
criação, bem como seu locus original, para
que os fantasmas daquele
tempo – que evocam à censura, perseguição e opressão -, fiquem restritos
às produções historiográficas, e que não aconteçam nunca
mais.